Anarco-abolicionismo penal: uma proposta para estancar a mentalidade punitiva

Anarco-abolicionismo penal: uma proposta para estancar a mentalidade punitiva

Autor: Acácio Augusto
publicado em: Revista APROPUC, nº 30 de abril a junho de 2007, São Paulo: , 0000, 35 – 39 pp.

Conheço outra evidência: ela me diz que o homem é mortal.

Porém contam-se nos dedos os espíritos que extraíram disto

as conclusões extremas. Há uma defasagem entre o que

imaginamos saber e o que realmente sabemos, a aceitação

prática e a ignorância simulada que faz com que vivamos

com idéias que, se as sentíssemos de verdade,

deveriam transtornar toda nossa vida.

Albert Camus

            A punição é “uma forma de interação humana em diversas práticas sociais: na família, na escola, no trabalho, nos esportes. Neste sentido, todos conhecemos seus papéis, o passivo do ser punido e o ativo ‘daquele que pune’”.[1] A resposta punitiva às situações conflituosas é uma prática comum na nossa sociedade; basta pensar em o que se faz com uma criança que não se comporta, com um estudante que causa problemas, com um jogador que não respeita o treinador ou com um funcionário que não segue as normas da empresa.

Neste momento histórico em que se dissemina a crença no combate à impunidade, urge questionar qual o efeito em ainda tratar infrações e situações conflituosas do ponto de vista da punição e da recompensa. Essa prática sedimentada de interação social sustenta as atuais políticas penais que combinam super-encarceramento — como prisões de segurança máxima para jovens e adultos — e medidas “mais brandas” de contenção de liberdade — como Liberdade Assistida para jovens e Penas Alternativas para adultos.

Muito raramente se questiona a possibilidade de encarar as transgressões fora do circuito punitivo. Nesse sentido, a perspectiva libertária sem ignorar a violência e o risco que habita a vida de cada um, mas também, sem fazer disso mote para aprisioná-la em espaços que reiterem a covardia de viver protegido sob o signo da segurança perpétua propicia atuar por outros percursos. Pretende arruinar este modo de vida baseado na lógica punitiva, favorecendo, na atualidade, perspectivas que enfatizam a liberdade contra as políticas de super-encarceramento combinadas com práticas de controles eletrônicos e democráticos para contenção de liberdade.

O objetivo deste artigo é o de apresentar brevemente a história das lutas anarquistas contra as prisões associadas às práticas do abolicionismo penal e seus efeitos no Brasil. Desta maneira, busca-se apontar não só para possibilidade da abolição da prisão para jovens, mas, também, para uma vida apartada das respostas punitivas a uma situação conflituosa. Com efeito, aparta-se das atuais soluções que se dizem contrárias ao encarceramento, mas que funcionam como restauradoras da prática punitiva, combinando controles eletrônicos a céu aberto com internação.

Libertários

Willian Godwin afirmou, com vigorosa coragem no final do século 18, que a questão da punição talvez fosse a mais fundamental da ciência política. Com esta afirmação, iniciou uma tradição mutante, entre libertários que combatem o sistema penal em proveito da liberdade do indivíduo diante do Direito, do Estado e da Comunidade. Esta tradição emerge em meio aos combates anarquistas em torno da prisão e da instituição do Direito como maneira específica de dominação burguesa, para defesa da segurança e da continuidade da propriedade privada. Esta crítica encontra-se em Proudhon, no jornal fourrierista La Phalange, na imprensa anarquista da segunda metade do século 19 e nos confrontos dos anarco-terroristas no final deste mesmo século.

Os anarquistas, em meio aos seus movimentos de libertação, inventaram práticas que colocavam em questão não só a continuidade do Estado e da dominação burguesa pelo Direito fundado na propriedade privada, mas que questionavam uma vida baseada no exercício centralizado da autoridade. Tal prática não se encontra alocada apenas nas instituições como uma forma específica de dominação, mas na maneira como cada um lida com o sexo, a educação de crianças e jovens, as relações com a produção e o trabalho. Essa maneira singular de atuar politicamente, demolindo a autoridade centralizada em suas mais cotidianas manifestações, levou Edson Passetti a apresentá-la como heterotopias: maneiras de experimentar a utopia, não como finalidade, mas como experiência do presente. Este deslocamento possibilitou uma outra maneira de atuação para os libertários, desvencilhando-os de uma obrigatoriedade histórico-temporal e levando-os para uma atuação histórico-política no espaço, inventando outras possibilidades de enfretamento da ordem, liberadas da revolução como solução final.

Esta histórica luta dos anarquistas encontra eco em uma prática libertária recente que investe na abolição do sistema penal. Na passagem da década de 1960 para 1970 emerge, na Europa, um grupo de estudiosos do Direito conhecidos como abolicionistas penais. Segundo Passetti: “O abolicionismo penal é uma prática libertária interessada na ruína da cultura punitiva da vingança, do ressentimento, do julgamento e da prisão. Problematiza e contesta a lógica e a seletividade sócio-política do sistema penal moderno, os efeitos da naturalização do castigo, a universalidade do direito penal, e a ineficácia das prisões […], e opera fora da órbita da linguagem punitiva e da aplicação geral das penas, para lidar com a infração como situação-problema, considerando cada caso como singularidade”.[2]

Os abolicionistas, assim como os anarquistas, não formam um bloco hegemônico de atuação. Entre os seus propositores (marxistas e libertários) há diferenças que não excluem a conversação e os embates, afirmando maneiras diversas de criticar analiticamente o sistema penal, como expressam as reflexões de Thomas Mathissem, Nils Christie e Louk Hulsman. Este último, com sua maneira singular de encarar o abolicionismo penal como um investimento, simultâneo, de movimento social e atuação intelectual na transformação dos costumes e da linguagem, aproxima-se mais dos libertários por atacar buscando rompimentos imediatos.

Anarco-abolicionismo penal

Desta maneira, uma associação entre a anarquia como vida apartada do governo, fundada em costumes que abolem a autoridade centralizada e abolicionismo penal como um estilo de vida que se aparta do julgamento e da punição constitui, como sugere Salete Oliveira, em uma parceria-força[3], que emerge no Brasil, a partir da década de 1990 investindo no fim da prisão para jovens.

O estudo instaurador dessa prática nasceu de uma pesquisa coordenada por Edson Passetti, realizada entre os anos de 1993 e 1994, publicada como livro com o nome de Violentados: crianças, adolescentes e justiça, que de maneira corajosa, já nos primeiros anos de promulgação do E.C.A. (Estatuto da Criança e do Adolescente), explicitou o redimensionamento do suplício para o interior da família e a violência das instituições contra crianças e adolescentes ultrapassando internamentos e unidades disciplinares.

Questionando as práticas jurídicas, direcionadas aos jovens no Brasil, com seus especialistas e técnicos reproduzindo uma sociabilidade autoritária que cerceava a liberdade dos jovens, encarando-os como propriedade da Família, do Estado e da Sociedade, o livro mostrava a permanência da mentalidade retrógrada de juízes que utilizavam o E.C.A. a partir de uma analogia com o Código Penal de 1940, reproduzindo as medidas dos antigos Códigos de Menores (1927 e 1979) e optando quase sempre pela medida sócio-educativa de internação, igualando medida sócio-educativa à pena.

Diante da guerra que é a política, este estudo se perguntava “por que não a paz?”. Diante da continuidade de uma política penal que reproduzia uma lógica de associação entre pobreza e violência e uma mentalidade punitiva incapaz de garantir a liberdade e a integridade física de jovens violentados por pais, avós, tios, padrastos, policiais, enfim, por todos que, segundo a lei, deveriam zelar por seu pleno desenvolvimento, surgia uma proposta que privilegiava a leitura do E.C.A. pelo seu viés pedagógico, enfrentando suas limitações como estatuto jurídico, e introduzindo uma possibilidade conciliatória. Enfim, surgia “uma proposta que jamais será aceita (a desativação da FEBEM)”, fazendo eco às propostas abolicionistas, atento ao círculo vicioso das reformas penais, e investindo na possibilidade de não mais internar em mini-prisões os jovens envolvidos em atos inflacionais[4].

Mais de dez anos após este estudo a prisão para jovens no Brasil continua, desdobrada em controles a céu aberto regulados pelo Estado e financiados pelas fundações empresarias. A mudança de nome de FEBEM (Fundação do Bem Estar do Menor) para CASA (Centro de Atendimento Sócio-Educativo ao Adolescente), apenas confirma o ciclo vicioso das reformas que garantem a continuidade da prisão para jovens como campo privilegiado de experiências penais e fabricação de soluções que ecoam em todo sistema penal. E, neste sentido, recentemente, é inegável como o uso de medidas sócio-educativas ensinou e preparou a entrada em vigência do regime das penas alternativas.

 

Estancar a mentalidade punitiva.

Se a punição é uma forma de interação social, cujo limite se chama asilo, manicômio, orfanato, internato, prisão, a breve exposição das experimentações de anarquistas e abolicionistas aponta para uma mudança na mentalidade punitiva das pessoas. Como anunciavam os libertários e como já havia mostrado Michel Foucault, em Vigiar e Punir, as reformas penais não passam de maneiras de perpetuar os regimes das penas, que não se encontram somente nas instituições de confinamento, mas no cotidiano da vida das crianças, jovens e adultos em circuitos de obediência naturalizada, transcendental ou cientificamente justificada à hierarquia.

A questão da violência envolvendo crianças e jovens no Brasil, relacionada a atos infracionais, desperta o interesse da mídia e da chamada sociedade civil, causando espanto, comoção, ira e muitas vezes horror e clamor por pena de morte. Nota-se nos debates televisivos, nos jornais e revistas de grande circulação, que pessoas de condições sócio-econômicas e formações culturais diferentes se posicionam de maneira similar. Via de regra, um acontecimento trágico, como um assassinato ou um estupro, desencadeia uma reação que coloca o âncora do telejornal da noite, o filósofo universitário e a dona de casa no mesmo registro opinativo. Cada um, lançando mão de sua linguagem específica, afirmando a mesmíssima coisa: combate à impunidade, pelo fim das infrações, mais rigor policial e disciplinar, intransigência com o tráfico de drogas, policiamento ostensivo, forças armadas nas ruas… Identificando pobres, miseráveis, crianças abandonadas, jovens perdidos, e contando com as camadas pobres da população rechaçando seus próprios sangues ruins. Eis um novo racismo que emerge numa era de muito controle; de um controle chamado democrático.

Todos esses pronunciamentos convergem para o mesmo discurso da segurança pública e da defesa da sociedade, ampliando o combate à escalada da violência com políticas que endureçam o tratamento dos autores de tais atos tidos como “criminosos”. Desse circuito opinativo, decorrem, com maior freqüência, as sazonais campanhas pela redução da maioridade penal e pela instauração da pena de morte legalizada no Brasil.

No entanto, existem os mais comedidos. Estes se esforçam em chamar a atenção para as condições de vida, do ponto de vista sócio-econômico, das pessoas identificadas como autores regulares dos atos que assombram a opinião pública. Com efeito, propostas de políticas sociais de assistência, exigindo maior presença do Estado, atuação responsável das empresas, proliferação das ONGs (Organizações não-governamentais), PPPs (Participações público-privadas), OSCIPs (Organizações da sociedade civil com interesse público) e dos institutos de pesquisa que se ocupam da questão, decorrem das intervenções sociais destes grupos. Embora pareçam contraditórios, os dois posicionamentos se complementam. Mesmo o primeiro parecendo mais duro e o segundo mais brando, o que move um e outro é a mesma coisa: a defesa da sociedade contra o perigo localizado, preferencialmente, entre jovens que, segundo eles, perderam o sentido de convivência digna e pacífica. Jovens que por sua condição sócio-econômica, o meio em que vivem e suas relações sociais representam um perigo para sociedade. Os discursos se unificam na constatação de que há uma escalada da violência que deve ser combatida, combinando assistência social, privada e estatal, e dura repressão, também privada e estatal.

Mas quando se combate a violência, de qual violência se fala? O Estado é violento. A Escola é violenta. A Família com suas regras e punições e suplícios de filhos, sobrinhos, netos e enteados, é muito violenta. Será que a preocupação com a violência dos que diariamente choram na TV e nos jornais é apenas uma preocupação com a violência que eles entendem como ilegítima? E isto supõe que o uso legítimo da força é imprescindível por parte do soberano. Mas, não foi este uso imprescindível que confundiu o legal e o ilegal até hoje (afinal a infração se torna crime segundo as circunstâncias históricas, e portanto não há uma ontologia do crime) e justificou estados de sítio, tiranias e exceções? Se querem estancar a violência, por que não se revoltam contra a continuidade da indústria armamentista que alimenta tanto o mercado legal quanto os mercados ilegais? Enfim, contra a propriedade privada,comunal ou estatal!

É quase impossível ignorar que a violência institucionalizada corresponde a uma maneira de viver baseada na autoridade centralizada, na distribuição assimétrica das condições de uso da força e de bens, e na continuidade de uma mentalidade punitiva. Se alguém, vivamente, se incomoda com a violência, que alguns apressadamente classificam como banalizada, é urgente que afirme o fim do sistema penal; não só de sua expressão terminal nos tribunais e prisões, mas antes, na reprodução cotidiana que se faz de um sistema de punição e recompensa difundido largamente na família, na escola, nas empresas e nas universidades.

A liberdade para os jovens acontece de maneira intempestiva. Tateando a vida com sagacidade, alguns jovens afirmam sua liberdade como outrora internos os rebelados na FEBEM,  os jovens estudantes e contestadores, os punks que vagam pelas ruas de uma grande cidade. Enfrentam punições e violências com vigor e coragem. Sabem que a transgressão, por ser isto mesmo, não pode ser compreendida nem esperada. É preciso estar atento para o que enunciam estas insurgências, algo que a mentalidade punitiva não comporta e não suporta!

Quando não capturadas em programas, projetos, propostas e partidos as atitudes de jovens revoltados alertam para possibilidades de liberações de uma forma de lidar com a vida, calcada na mentalidade punitiva, que há muito apodrece, como alertaram, os anarquistas e operários do final do século 19, e as intempestivas incursões dos jovens terroristas como Émile Henry – não tanto por suas bombas, mas pela atitude desafiadora diante de verdades que se pretendem incontestáveis e de uma sociedade que se crê eterna. Quando não capturadas em programas, projetos, propostas e partidos as atitudes de jovens revoltados alertam para possibilidades de se liberar de uma forma de lidar com a vida, calcada na mentalidade punitiva, que há muito cai de podre, como alertaram, aos anarquistas e operários do final do século 19, as intempestivas incursões dos jovens terroristas como Émile Henry. Não tanto por suas bombas. Mas pela atitude desafiadora diante de verdades que se pretendem incontestáveis e de uma sociedade que se crê eterna.

 


 

[1] Hulsman, Louk. “Alternativas à Justiça Criminal” in Passetti, Edson (coord.). Curso livre de abolicionismo penal. São Paulo/Rio de Janeiro, Nu-Sol/Revan, 2004, p. 35.

[2] Passetti, Edson. “Ensaio sobre um abolicionismo penal” in Verve, n° 9, São Paulo, Nu-Sol, pp. 83-84.

[3] A sugestão de abolicionismo e anarquia como uma parceria-força contra o encarceramento de jovens no Brasil, pode ser observada em uma série de trabalhos do Nu-Sol, desde seu primeiro boletim mensal eletrônico Hypomnemata, em www.nu-sol.org, consultado em 28/07/2007. A denominação específica para esta associação como uma parceria-força é apresentada por Oliveira, Salete. “Anarquia e dissonâncias abolicionistas” in Revista Utopia, n° 22, Lisboa, 2006, pp. 29-32 e em ponto e vírgula. Revista eletrônica do programa de estudos pós-graduados em ciências sociais da PUC-SP, São Paulo:PUC-SP, agosto 2007, n. 1.

[4] Passetti, Edson et alli. Violentados: Crianças, adolescentes e justiça. São Paulo, Imaginário, 1999, pp. 170