Todo preso é um preso político!
“Tanto na prisão de grade como na sem grade você vive sem oportunidade e quem faz as coisas funcionarem não é o Estado, mas o convívio das pessoas. E eu tenho essa visão até hoje. Apesar desses problemas, de morte, eu lembro muito disso na cadeia, dessa união pra resolver as coisas. E aqui fora também…. as pessoas se unem nas suas semelhanças. O estado te dá muito pouco recurso, quem te estende a mão são pessoas comuns que estão ao seu lado”.
Fui preso no dia 22 de Janeiro de 2007 por furto e enquadrado em outro artigo, 157, “assalto à mão armada”. Roubei um celular e uma carteira, em Madureira. Não encontraram nenhuma arma comigo, mas a palavra da vítima foi tomada como verdade e fui preso por outro artigo. Na 30 DP o delegado não me ouviu. O adjunto mandou assinar os papeis e só permitiu que eu ligasse pro advogado se eu assinasse. Logo que cheguei fui confinado nessa delegacia e depois transferido para a 39 DP, na Pavuna. Lá tudo é totalmente desumano, muito pior do que em Bangu. Fiquei no xadrez X, local de 4 metros por 5 com aproximadamente 100 homens, um “boi” (buraco no chão) e um chuveiro. O convívio lá era o seguinte: você tinha direito a 3 banhos por dia, 3 minuto cada, 3 voltas no relógio. Tudo era organizado pelos presos. Você recebia a quentinha azeda. Tinha direito à sol se você pagasse e você também podia usufrir de um milhão de regalias se você tivesse dinheiro para usufruí-las. Lá na DP tinha gente no xadrez vip, com 4 pessoas numa cela igual a minha. Na hora de dormir a gente revezava porque não tinha como todo mundo dormir ao mesmo tempo. A gente fazia o revezamento de 12 horas. Metade dormia de meia-noite à 6h e a outra metade de 6h à meio-dia. Não tinha cama. A gente dormia “valetado”. “Valete à fiado”, um dormindo de pé pro outro, e também de costas pro outro. No local que eu dormia também tinha esgoto no chão do xadrez. Uma condição bem louca de se viver e eu vivi nessa condição por 2 semanas, até conseguir uma casa de custódia em Bangu. Lá você é recepcionado por alguns DESIPES, os carcereiros, e essa recepção é acompanhada por raspagem de cabelo, máquina zero, e você sofre todo aquele processo de terror psicológico, de terror da autoridade, de cabeça baixa. Perguntam qual a sua facção, se tem facção, porque aí se você tiver você não pode ficar lá. Você não pode olhar nos olhos deles, porque se fizer isso eles te agridem. Os presos que tem morte de policial nas costas apanham muito. E também quem comete estupro. Eles ficam fora do convívio social. Ficam no chamado “seguro”. O pior processo é pra quem é estuprador, ou acusado injustamente de estuprador. Você apanha muito dos guardas e fica nesse “seguro”, que é pra onde os presos correm na fuga.
Nessa casa de custódia onde fiquei tinha dez convívios, de “A” até “J”, e viviam lá aproximadamente de 70 a 80 homens em cada convívio desse. Neles você tem uma pedra pra dormir, você tem direito a esse beliche de pedra pra dormir. Você é conduzido aleatoriamente pra um desses convívios. São vários os processos que a gente passa dia-a-dia lá na prisão. O desipe não deixa você ficar muito tempo sem revista, pra você não se sentir acomodado. Na parte da manhã e da tarde sempre tem contagem dos presos. Na casa de custódia você tinha direito a 2 horas por semana de banho de sol. Dentro de uma casa de custódia tem as mesmas coisas que existe aqui fora. Tem celular e aí você fala com seus parentes ou também ele pode ser usado pra extorsão, que é geralmente feita pela recarga do celular. Gera um tipo de comércio. Tem também o comércio de droga: maconha, cocaína, craque.
Fiquei na casa de custódia 7 meses, esperando minha sentença sair. Uma coisa da nossa rotina é a questão das visitas de familiar. Eles só podem te visitar depois de 1 mês, após sair a carteirinha. Antes eles podem te mandar roupa, pequenas coisas, porque lá eles não te dão nada. A comida também é muito ruim. Nesse mês que eu fiquei sem visita eu passei muita fome. De manhã tem a “marroca”, que é o pão com manteiga, e o almoço que a gente chama de “brilhosa”. O almoço chega entre 11h30 e 12h e a janta chega às 16h, pelo menos no período que eu fiquei lá. Então de 4h da tarde até o café você passa fome, não tem o que comer. Aí com a visita mudou. Você tem direito a 2 horas de visita por semana. A tua família passa um constrangimento terrível nessa hora. Minha mãe tinha que agachar em baixo de um espelho. Toda comida que ela fazia com carinho era mexida. Era um processo muito doloroso pra minha família… revistarem a comida que ela fez com amor pro seu filho, pela suspeita e medo de entrar alguma coisa, quando tudo tinha lá… Esse procedimento era só pra humilhar nossas famílias.
Na casa de custódia eu fiquei sabendo que fui sentenciado à 5 anos e 4 meses. Depois que minha sentença saiu eu fui transferido para um presídio considerado de segurança máxima, que é o Bangu 6, e lá eu tive contato com pessoas que cometeram crimes “extratosféricos”, como assalto armado de banco, homicídios, tráfico de drogas. Por isso a gente chama a prisão de “faculdade”. Eu conheci um cara que tava lá porque usou um riocard de outra pessoa e foi misturado com outras pessoas com crimes bem diferentes e pesados. Tem esse processo de mistura, essa disparidade. Também não tem qualquer tipo de atividade dentro da prisão, de ressocialização do preso. Outra coisa que marca muito são os “acertos de conta”, que acabam em morte. Aí tem enforcamento, pessoas são decapitadas, tomam mais de 100 estocadas, 100 facadas a partir dos ferros. O estoque é pra estocar mesmo, pra tu ferir o outro. Às vezes as pessoas morriam com 100 facadas. As brigas eram diárias. Enfermarias. As mortes eram mais espaçadas e aconteciam geralmente por causa do craque. A pessoa usava o craque, prometia pagar, a família dizia que ia trazer o dinheiro, não trazia, e ele pegava com a própria vida.
Tinha um cara que era viciado em craque e não tinha como pagar. A sua mulher teve que deitar com o traficante pra ele não morrer e isso era uma constante em todos os presídios que eu passei. Foi uma coisa que me marcou.
Eu tive uma experiência dentro da prisão que foi de morar dentro de um convívio com evangélicos. Foi o local mais tranquilo que eu tive, onde se respeitavam mais, não tinha muito uso de droga.
Eu fiquei em Bangu 6 aproximadamente 3 meses, quando eu fui transferido pra uma prisão semi-aberta. Você fica o período do dia de 7h até as 16h num determinado espaço aberto com uma quadra de futebol e uma mesa de ping-pong. Esse presídio é o Sá-carvalho. Eu fiquei lá 2 meses. No presíido semi-aberto você pode ganhar alguns benefícios, como o VPL (visita periódico ao lar) ou o extra-muro, que você sai pra trabalhar e volta pra dormir. No VPL você tem o direito de em 15 em 15 dias visitar sua família. Sai de dia e volta de noite. O beneficio que eu ganhei lá foi o da prisão aberta. De lá eu fui para uma prisão aberta e no dia 18 de Janeiro de 2008, quase um ano depois, eu vi a rua de novo. A prisão aberta fica do lado do batalhão prisional da polícia, em Benfica. Casa do albergado Crispim Ventino. Lá você tem direito de sair de dia e voltar à noite pra dormir. Nos finais de semana você fica lá pra dormir também. Porém, lá tem o suborno. Como a fiscalização não é muito rígida você podia subornar o desipe e passar um dia ou uma semana em casa. Depende de quanto você dava pro desipe. Eu fiquei nesse processo de ida e volta na casa de albergado durante 9 meses. Depois que eu cumpri esse processo eu fiquei apenas indo lá de 3 em 3 meses pra assinar uma caderneta até que um dia acabou e eu fiquei em liberdade definitiva.
A prisão aberta tem um índice de evasão muito grande. Geralmente 90% dos presos não voltam pra dormir de noite, porque é sujo, sem estrutura, e a mínima estrutura quem oferece é o próprio preso, o que não é nada diferente das outras prisões. E lá você não tem qualquer tipo de apoio, de um psicólogo, alguém que pode te indicar algum trabalho, algum curso, pré-vestibular, algum caminho.
Revendo tudo, não acho que o período que eu passei foi grande, porque eu conheci gente que ficou 16, 20 anos preso. Mas quando você sai é aquilo… Quando você vê a rua de novo você fica tonto. As milhares de oportunidades que você pode realizar. Você fica primeiro assustado com a rua, com todo aquele movimento de carro, de pessoas. Parece que você tá nascendo de novo. Parece que você volta a ser criança. Tudo é novidade. Um prato de comida que a sua mãe bota é sensacional, você poder tomar uma decisão que não podia tomar, isso é incrível. Com o tempo isso vai passando e a rotina vai voltando, desemprego, procurar trabalho, e você volta pra outro tipo de prisão, que é essa prisão sem grades onde você não tem oportunidades. Tanto na prisão de grade como na sem grade você vive sem oportunidade e quem faz as coisas funcionarem não é o Estado, mas o convívio das pessoas. E eu tenho essa visão até hoje. Apesar desses problemas, de morte, eu lembro muito disso na cadeia, dessa união pra resolver as coisas. E aqui fora também…. as pessoas se unem nas suas semelhanças. O estado te dá muito pouco recurso, quem te estende a mão são pessoas comuns que estão ao seu lado. Você se abriga muito mais numa pessoa comum, do que no governo.
(Todo preso é um preso político?)
A sociedade precisa, de alguma forma, punir seus transgressores, seus “delinquentes” e geralmente essa forma não é através do diálogo, de uma benfeitoria. As pessoas tem muito aquela visão de revanchismo, apodrecer na cadeia, como se isso fosse melhorar alguma coisa. A punição de alguém que comete um crime, seja qual for, deveria passar primeiro pelo pensamento de ressocializar a pessoa e não de confinar, isolar ela e colocá-la em condições horríveis, pois aí piora a situação dela. Você coloca ela num lugar podre, horrível, e diz que aí a pessoa vai melhorar. Mas ao fazer isso pode-se gerar alguma coisa positiva? Esse é o questionamento que eu tenho e por isso eu acho que todo preso é um preso político. A prisão está lotada de pessoas de classes mais humildes, você não vê pessoa rica lá dentro. A maioria das pessoas estão presas por crimes banais. A senhora que roubou uma margarina. O Rafael Braga por portar pinho sol. E se você parar na porta de Bangu e perguntar pras pessoas quais são os seus crimes você vai ver que são coisas pequenas, coisas que nem fizeram, ou não mereciam levar elas presas pra um lugar como aquele.
De todo o horror, a experiência e lembrança bonita que levo é o momento da visita. Ali os familiares eram cúmplices. Os que eram novos, que iam passar por aquela humilhação, eram acolhidos pelas pessoas mais antigas que iam confortá-las, se uniam, é uma lembrança boa. Todas as coisas bonitas e boas vem das pessoas comuns, nunca do Estado.
Felipe, 29 anos.