Rio, 03-06-2015, 180 dias de detenção:
[Para Tribuna da Imprensa online]
[Para a campanha dos Presos Políticos de modo geral]
O Complexo Penitenciário de Gericinó é o maior conjunto de presídios do Brasil. Deve ter em torno de 35 mil presos – uma cidade. Uma cidade muito particular, certamente, cercada por muros altos e grades, e homens armados nos tetos. Uma cidade na qual, atrás dos seus portões de ferro, as leis do país e conquistas humanas que já datam mais de duzentos anos (contando a partir da revolução francesa), como a própria noção de direitos, só valem até certo ponto, variando de acordo com o administrador de cada presídio, com o status social do preso ou até mesmo com o humor dos funcionários de plantão.
Nesse meio ano que estou aqui já vi muitas coisas, já ouvi muitas histórias. Pretendo contá-las, sem dúvida: quando aquilo que acontece atrás desses muros deixar de ser invisível, é possível que muitas opiniões sejam revistas, inclusive a noção tão difundida que “leis mais duras” e cadeia podem ser a solução para as profundas mazelas sociais e suas consequências que nos assolam secularmente. Mas a hora de cumprir essa tarefa, plenamente, ainda não chegou, mesmo porque eu continuo aqui, a via-crucis não terminou. Queria apenas compartilhar com vocês um pouco dessa experiência, não através de uma análise sociológica, tanto porque existem pessoas mais competentes para isso assim como porque não disponho de nenhum material de pesquisa, e sim pintando um quadro humano desse lugar, onde aprendi, dentre outras coisas, que não há limites para quem decidiu viver coerentemente de acordo com suas convicções, dignamente. Resistir é preciso, já dizia o Leão Alípio de Freitas, e é possível, ouso complementar. Aproveito para deixar registrada aqui, novamente, a minha saudação à campanha pela libertação dos presos políticos e aos meus queridos companheiros e companheiras que não me deixam sentir só em nenhum momento. Como o tema é vasto, escreverei esse artigo em duas partes, mas mesmo assim isso não esgotará, nem de longe, tudo que tenho vivenciado nos seis meses mais longos da minha vida.
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Desses 180 dias o primeiro mês foi, sem dúvida, o mais difícil. Todo o estresse que envolve a prisão, a sensação de não saber, enquanto aguardava transferência da cidade da Polícia para Bangu o que me esperava. O contato com celas e algemas, o pensamento febril concentrado sobre todas as coisas que precisavam ser feitas, e agora teriam que ser adiadas… Dentro da cela temporária, ainda na Polícia Civil, na qual ficaram companheiros presos em julho do ano passado, guardei uma frase deixada por algum infeliz que por lá passara: “A cadeia é longa, mas não é perpétua”. Foi a primeira vez que li essa que é uma das máximas do universo na prisão. Há outras, como, por exemplo, “Não confie em ninguém”, “Quem fala menos, erra menos”, e por aí afora.
Por volta das três horas da tarde daquele 03 de dezembro cheguei ao presídio Bangu 10, atual triagem do sistema prisional. Em média os detentos permanecem lá dois, três ou quatro dias, após os quais são transferidos para outras casas de custódia e penitenciárias. Eu lá permaneci por quarenta dias, das quais deve-se descontar os dois que passei no Presídio Patrícia Acyoli, em São Gonçalo, para o qual fui transferido por engano, retornando logo (acreditem, isso aconteceu realmente!). Sendo uma cadeia de triagem, ela não assegura aos detentos alguns direitos básicos que tornam a sua vida mais suportável, como banho de sol ou acesso a itens levados pelos familiares (custódia). Vive-se rigorosamente com o que fornece a prisão, o que significa uma vida miserável. Esse período eu o enfrentei todo isolado numa cela, sem dela sair para nada (exceto para falar com os advogados), e me lembro que quando, no fórum, me olhei no espelho, tomei um susto: talvez a mesma sensação experimentada pelos povos indígenas diante daquela novidade trazida pelos portugueses. Insisti, desde o início, para ter acesso a livros, papel e caneta, principalmente depois que descobri haver ali uma biblioteca desativada, onde os volumes comprados com dinheiro público estão literalmente apodrecendo. O mais perto que cheguei de alcançar esse objetivo foi quando o chefe de segurança, talvez vencido pelo cansaço, disse que me levaria até a tal sala de livros “daqui a pouco”. Continuo esperando…
Nada foi pior, entretanto, que ver e ouvir os espancamentos de presos que ali ocorriam (talvez ainda ocorram) diariamente. Eu mesmo quase fui agredido, justamente no primeiro dia, quando me recusei a raspar o cabelo. Além da violência que esse gesto por si só representa (trata-se pura e simplesmente de um castigo corporal), ele é agravado porque, propositalmente, o preso que é responsável pelo “corte” e orientado pelos guardas a fazer mal seu serviço, de modo a deixar tufos de cabelo em meio à cabeça raspada, humilhando ainda mais o detento. Uma cena dantesca. Por coincidência eu fui o último da fila e, não sem minha luta com minha própria consciência, na hora de submeter-me ao ritual infame, recusei-me falando em alto e bom som:
– Sou um preso político, conheço meus direitos e me recuso a raspar o cabelo!
Um agente logo veio gritando na minha direção, com o olhar crispado de ódio, babando, mas foi contido por seus colegas, que procuravam entender o que estava acontecendo. Os demais presos que estavam ao redor levantaram as cabeças- acho que pela primeira vez em horas- e nesse instante eu só queria poder adivinhar quais eram seus pensamentos diante daquela insubordinação. Mais tarde obtive minha resposta, mas naquele momento a única coisa que havia nas suas expressões era a perplexidade de quem está presenciando alguma coisa inacreditável.
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Até então os manifestantes que haviam sido presos e encarcerados em Bangu chegavam, via de regra, em grupos, acompanhados por forte repercussão na imprensa. Eu fui preso sozinho, num momento em que as manifestações haviam refluído, com o ano se encaminhando para o final de modo que, sobretudo no começo, até que iniciassem as audiências, amplamente cobertas pelos monopólios da imprensa, tive que defender ferozmente minha condição de preso político- ninguém me a concedeu, digamos assim, “automaticamente”. Defendê-la não para buscar um tratamento privilegiado, coisa aliás que nunca tive (boa parte do meu tempo de detenção, já após minha transferência para a Penitenciária Bandeira Stampa, passei em celas coletivas, o que aconteceu com poucos ativistas presos no Rio no nosso passado recente), e sim para sublinhar o caráter político e de exceção do nosso processo, e consequentemente da minha prisão. Os nossos algozes buscam, justamente, como seu objetivo principal, não a nossa condenação, e sim desqualificar-nos enquanto lutadores do povo, no meu caso, como revolucionário. Afirmarmo-nos, ao contrário, como militantes, com palavras e com fatos, significa, portanto, frustrar seus objetivos, derrotá-los e, de certo modo, conservar a nossa liberdade, ainda que presos. Essa disputa não é nenhuma novidade: mesmo os regimes mais atrozes costumam negar a repressão que praticam contra os dissidentes políticos, o que fez o próprio regime militar brasileiro, que sempre fez questão de apresentar os resistentes como meros assaltantes de banco, sequestradores, terroristas, etc (contanto para isso, como é notório, com o trabalho sujo das organizações Globo).
Os detentos com os quais convivi mostraram-se sempre solidários com a nossa luta, indignados com o que está acontecendo. Palavra que não conheci até aqui (e as idas semanas ao Fórum me permitiram conversar com muitos presos, dos maios diversos lugares) ninguém que, sendo réu primário como eu, esteja preso preventivamente por um artigo cuja máxima ainda que majorada, na hipótese de condenação, em pouco ultrapassa os quatro anos. Mas essa foi uma via de mão dupla: também ouvi suas histórias, indignei-me com outras arbitrariedades e procurei transmitir-lhes, sempre que pude, que também sua prisão reveste-se de um caráter político e social, pelo simples fato de ser seletiva: é para os pobres que existe a cadeia.
Isso responde à pergunta com a qual encerro esse texto: quem são os presos? Nem santos, nem demônios. Muitos cometeram atos realmente condenáveis; outros, dentro da prisão, se rebaixam à condição de alcaguetes, ou cometem gestos indignos, em troca de alguma ninharia, buscando sair da senzala e atingir a posição de escravo da casa-grande. Outros, muitos, são inocentes ou já cumpriram sua pena e, por absoluta falta de assistência, seguem presos; uma grande massa está presa sem condenação (quase metade do sistema prisional, salvo engano), e desses, muitos virão a ser absolvidos. A maioria é solidária e divide o pouco que tem com os que não têm nada. São quase todos pobres, pardos ou negros em sua maioria, e o índice de analfabetismo é aqui elevadíssimo. Não compreendendo o implacável mecanismo que os esmaga, o tomam como desígnio de providência, buscando, nos cultos evangélicos, a resignação e um paliativo para a saudade das pessoas amadas, fonte maior de sofrimento. Os presos são pessoas como quaisquer outras, enfim.
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Um dia, ao me tirar da cela, um guarda falou:
– Eu vi o seu nome na rua.
Bem, isso tem sido comum, e perguntei-lhe então, pensando em outras coisas mais importantes:
– Ah, é? Alguma notícia no jornal?
– Não. Pichado no muro.
– Uma descarga percorreu o meu corpo. É essa persistência, e coragem, e solidariedade que permitirá a conquista da nossa vitória, em alguma manhã de sol radiante localizada no futuro.